Notícias da Reunião sobre o Fígado - 2016

Esta edição do boletim infohep.org foca-se nas notícias da Reunião do Fígado, organizada pela Associação Americana para o Estudo das Doenças Hepáticas (AASLD), que teve lugar em Boston, de 11 a 15 de novembro de 2016.

Novas combinações pangenotípicas

Stefan Zeuzem numa apresentação na AASLD 2016. Foto de Liz Highleyman, hivandhepatitis.com

Estão em vista novas combinações que tratam cada um dos genótipos da hepatite C e que apresentam taxas de sucesso semelhantes.

Uma nova combinação de antivirais de ação direta (AAD) criada para tratar todos os genótipos da hepatite C curou 99% das pessoas com os genótipos 1, 2, 4, 5 e 6 e, num estudo separado, curou entre 91 a 96% das pessoas infetadas pelo genótipo 3. O glecaprevir e o pibrentasvir (G/P) estão a ser desenvolvidos pela AbbVie para toma única diária num regime de comprimido único que pode ser doseado sem ribavirina. Ambos os medicamentos na combinação são altamente eficazes contra todos os genótipos da hepatite C.

Foram apresentados na Reunião sobre o Fígado os resultados dos três estudos de fase III com glecaprevir e pibrentasvir:

  • O ENDURANCE -1 testou a combinação entre pessoas infetadas pelo genótipo 1 e com cirrose. Os participantes receberam a combinação durante 8 ou 12 semanas. O estudo concluiu que 99% ou mais dos participantes de ambos os braços do estudo atingiram uma resposta virológica sustentada (RVS12);
  • O ENDURANCE -2 testou a combinação entre pessoas que nunca fizeram anteriormente o tratamento ou pessoas infetadas com o genótipo 2 que já o tinham feito anteriormente. O estudo concluiu que 99% dos participantes atingiram RVS12;
  • O ENDURANCE -4 testou a combinação entre pessoas que nunca fizeram anteriormente o tratamento ou pessoas infetadas com os genótipos 4, 5 e 6 e sem cirrose. Concluiu-se que 99% dos participantes atingiram RVS12.

No SURVEYOR-II, um ensaio clínico de fase II que testou várias durações de tratamento, a combinação experimental curou entre 91 a 96% das pessoas que já tinham feito anteriormente o tratamento e/ou pessoas com cirrose (ver Genótipo 3 da Hepatite C para mais detalhes).

Com base nestes resultados, o comprimido de glecaprevir e o pibrenyasvir será submetido para aprovação comercial no final de 2016 nos Estados Unidos da América e no início de 2017 na União Europeia e Japão, sendo provável que receba a aprovação no mesmo ano.

A Gilead Sciences apresentou os resultados de ensaios de fase III de um regime composto pelo sofosbuvir, velpatasvir e voxilaprevir.

O sofosbuvir e o velpatasvir já estão disponíveis no comprimido de combinação Epclusa, que recebeu aprovação comercial no início deste ano nos Estados Unidos da América e União Europeia. O voxilaprevir é um inibidor da protease ativo contra todos os genótipos do vírus da hepatite C. Os ensaios de fase III testaram uma combinação dos três medicamentos, doseados num comprimido com toma única diária.

Os estudos demonstraram que:

  • 8 semanas sob o regime triplo teve um resultado inferior ao das 12 semanas com sofosbuvir/velpatasvir entre pessoas infetadas com o genótipo 1. Em todos os outros genótipos não houve diferença entre os regimes de três e de dois medicamentos. As taxas de resposta sustentada com o regime triplo foram de 92% para o genótipo 1a, 97% para o 1b, 97% para o genótipo 2, 99% para o genótipo 3, 92% para o genótipo 4, 94% para o genótipo 5 e 100% para o genótipo 6; todos os genótipos tiveram taxas de RVS12 na ordem dos 97-100% com o regime duplo;
  • Entre pessoas infetadas pelo genótipo 3, o estudo POLARIS-3 obteve taxas de RVS12 de 96% quer no braço de 8 semanas com sofosbuvir/velpatasvir e voxilaprevir, quer no braço de 12 semanas com sofosbuvir/velpatasvir;
  • Entre pessoas com os genótipos 1-4 que não conseguiram curar a infeção pela hepatite C através dos regimes de AAD, o regime triplo curou 97% das pessoas, em comparação com 90% daqueles que receberam sofosbuvir/velpatasvir. Este estudo concluiu que o regime triplo é superior à terapia dupla. Neste estudo a diferença em termos de eficácia foi mais pronunciada em pessoas com cirrose e o regime triplo foi mais eficaz entre as pessoas com o genótipo 1a do que o regime duplo;
  • Entre pessoas que tomaram anteriormente ledipasvir, daclatasvir ou ombitasvir (parte do regime triplo da AbbVie), o regime triplo curou 96% das pessoas com genótipos 1-4.

A Gilead Sciences pretende obter aprovação comercial para esta combinação nos Estados Unidos da América no final de 2016 e pouco depois na União Europeia.

A Merck está a avaliar uma coformulação de dose fixa e toma única diária que contém o inibidor da protease grazoprevir (parte da coformulação com elbasvir, o Zepatier®) já aprovado para o vírus da hepatite C, o nucleótido em investigação NS5B, o inibidor da polimerase MK-3682 e o ruzasvir, um inibidor NS51 de última geração (anteriormente conhecido por MK-8408). Esta combinação é ativa contra todos os genótipos.

Os estudos de fase II apresentados na Reunião sobre o Fígado demonstraram que:

  • A combinação foi altamente eficaz como regime de 8 semanas, 12 semanas e 16 semanas em pessoas com os genótipos 1, 2 ou 3 do vírus da hepatite C, com taxas de resposta sustentada de 86 a 100%, dependendo da duração do regime;
  • Um regime de 16 semanas com ribavirina foi muito eficaz entre pessoas com falência terapêutica no regime de 8 semanas;
  • O MK-3682/grazoprevir/ruzasvir com ribavirina ao longo de 16 semanas ou sozinho ao longo de 24 foi muito eficaz entre pessoas que sofreram falência terapêutica com sofosbuvir/ledipasvir (Harvoni®) ou grazoprevir/elbasvir (Zepatier®).

Genótipo 3 da hepatite C

Graham Foster numa apresentação na AASLD 2016. Foto de Liz Highleyman, hivandhepatitis.com

As pessoas com o genótipo 3 da hepatite C possuem maior risco de desenvolver fibrose hepática avançada e carcinoma hepatocelular que as pessoas com outros genótipos e as pessoas que já fizeram anteriormente o tratamento têm também menos opções terapêuticas livres de interferão.

O Professor Graham Foster da Universidade Queen Mary, em Londres, referiu-se às pessoas com o genótipo 3, com cirrose e que já fizeram anteriormente o tratamento como “as mais difíceis de tratar”. Os regimes aprovados para este grupo incluem o sofosbuvir/velpatasvir (Epclusa®) com ribavirina ao longo de 12 semanas ou sofosbuvir com daclatasvir (Daklinza®) com ribavirina ao longo de 12 ou 24 semanas. Porém, e até recentemente, as combinações de antivirais de ação direta (AAD) com interferão peguilado ainda eram consideradas opções para estes pacientes mais difíceis de tratar.

Três estudos apresentados na Reunião sobre o Fígado demonstraram que o genótipo 3 pode agora ser tratado com sucesso na larga maioria das pessoas que tomem as novas combinações terapêuticas. As pessoas que já fizeram anteriormente o tratamento e as pessoas com cirrose tiveram taxas de cura semelhantes às observadas em pessoas com outros genótipos e que nunca fizeram o tratamento.

Um regime triplo de grazoprevir/elbasvir (Zepatier®) com sofosbuvir (Sovaldi®) e sem ribavirina curou 96% das pessoas que nunca tinham feito anteriormente o tratamento e 97% das pessoas que já o tinham feito anteriormente com o genótipo 3 da hepatite C e cirrose hepática, valores semelhantes aos observados junto de grupos mais fáceis de tratar, de acordo com os resultados do estudo C-ISLE.

A combinação pangenotípica de glecaprevir e pibrentasvir, da AbbVie, curou quase todas as pessoas com genótipo 3 mais difíceis de tratar – aquelas com cirrose e/ou que tinham feito anteriormente o tratamento – num ensaio de fase II. O estudo concluiu que, dependendo da duração do tratamento, foram curados entre 91 a 96% dos participantes. Neste estudo, todos os casos de falência terapêutica ocorreram em pessoas com cargas virais muito elevadas.

O regime triplo com sofosbuvir, velpatasvir e voxilaprevir, da Gilead Sciences, foi muito eficaz entre pessoas com o genótipo 3 e cirrose compensada, tendo curado 96% dos participantes no estudo POLARIS-3. A combinação também curou 99% das pessoas infetadas com o genótipo 3 no estudo POLARIS-2 e, no estudo POLARIS-4, 94% das pessoas infetadas com o mesmo genótipo e que tinham feito anteriormente o tratamento com AAD.

Todos estes regimes terapêuticos podem ser seguidos sem ribavirina, abrindo a possibilidade de existir um tratamento que seja livre de interferão e ribavirina para pessoas infetadas com o genótipo 3.

Performance de tratamento em contexto real semelhante aos melhores resultados em ensaios clínicos

De acordo com os resultados de um estudo de grandes dimensões apresentado na Reunião sobre o Fígado, o tratamento com antivirais de ação direta (AAD) está a curar pessoas infetadas com o vírus da hepatite C em contexto hospitalar e as taxas são semelhantes às observadas nos ensaios clínicos, não parecendo existir grandes diferenças entre os regimes terapêuticos.

Os ensaios clínicos tendem a apresentar os melhores resultados possíveis no que à eficácia dos novos medicamentos diz respeito. Os participantes destes ensaios são selecionados cuidadosamente a partir de populações que já frequentam as clínicas – sendo, por definição, um grupo de doentes bastante motivado. Além disso, recrutar pessoas para ensaios clínicos e monitorizá-las custa dinheiro, pelo que serão acompanhadas cuidadosamente e, em muitos casos, estão a obter o tratamento gratuitamente, o que amplia os incentivos para se manterem sob o mesmo. Todos estes fatores tendem a promover melhores resultados entre os participantes dos ensaios clínicos do que entre as populações “em contexto real” que lhes seguem.

Uma avaliação da Veterans Affairs Cohort – militares veteranos que recebem cuidados de saúde através das clínicas Veterans Affairs dos Estados Unidos da América – concluiu que as pessoas que receberam tratamento com AAD nestes hospitais estão a curar a infeção pela hepatite C em taxas semelhantes às observadas nos ensaios clínicos das combinações terapêuticas cuja toma se encontra hoje generalizada.

As taxas de cura foram mais elevadas entre pessoas infetadas com o genótipo 1 e em pessoas com os genótipos 2 e 3 sem cirrose. O estudo também concluiu que um tratamento de 8 semanas com sofosbuvir/ledipasvir (Harvoni®) nas pessoas elegíveis ao mesmo foi tão eficaz quanto um tratamento de 12 semanas entre aqueles que não se qualificaram para aceder ao tratamento de duração inferior.

Aumento de tratamento e continuação de cuidados de saúde

George Ioannou, da Universidade de Washington, em Seattle, afirmou na Reunião sobre o Fígado que, se estivesse disponível dinheiro suficiente para pagar antivirais de ação direta (AAD), o US Veterans Affairs (VA) poderia, num período de três anos, curar a infeção pela hepatite C da maior parte dos veteranos de guerra que estão sob os seus cuidados e já demonstrou ter a capacidade para garantir que quase 7 000 pessoas iniciam o tratamento num único mês.

Dados australianos apresentados na conferência demonstraram o que acontece quando outro grande sistema de saúde começa a aumentar o tratamento. De acordo com uma investigação conduzida por investigadores do Kirby Institute da Universidade de New South Wales, estima-se que, desde março de 2016, 26 000 pessoas tenham iniciado o tratamento com AAD na Austrália. Estima-se também que quase dois terços das pessoas com hepatite C e cirrose já tenham sido curadas.

Embora estas taxas de iniciação de tratamento sejam impressionantes, a eliminação da hepatite C – ou mesmo a prevenção de um aumento das morbidade e mortalidade relacionadas com doença hepática – irá necessitar de aumentos consideráveis do rastreio da infeção e posterior ligação aos cuidados de saúde. Apresentações na Reunião sobre o Fígado demonstraram que ainda são generalizadas nos Estados Unidos da América as graves deficiências no rastreio da hepatite C e ligação aos cuidados de saúde, ameaçando deixar por tratar grande parte dos baby boomers que vivem com a infeção.

A abordagem, que consiste em acompanhar um grupo de pessoas nascidas num determinado ano ou período numa coorte, foi adotada pelo Centers for Disease Control and Prevention para o rastreio da hepatite C devido às elevadas prevalências da infeção entre os baby boomers estado-unidenses e à custo eficácia do rastreio entre uma população mais idosa. Estima-se que três quartos de todos os casos de infeção crónica pela hepatite C nos Estados Unidos da América ocorram em baby boomers e as pessoas mais velhas que se infetaram há várias décadas estão mais vulneráveis a complicações que possam surgir a partir de danos hepáticos avançados.

Cancro hepático em pessoas tratadas com antivirais de ação direta

As pessoas infetadas com a hepatite C podem curar a infeção com um tratamento de antivirais de ação direta (AAD), mas a eliminação da infeção poderá não melhorar suficientemente o fígado para prevenir o desenvolvimento de cancro hepático. Além disso, existem evidências que indicam que as pessoas com cirrose que fizeram anteriormente um tratamento para o cancro hepático têm uma taxa mais elevada de ressurgimento deste tipo de cancro. Dois estudos, conduzidos em Itália e Espanha, concluíram que cerca de 30% das pessoas que trataram anteriormente o cancro hepático sofreram um ressurgimento do mesmo num período médio de seis meses após terminarem o tratamento para a hepatite C. Ambos os grupos de investigação consideraram anormal a taxa de ressurgimento junto dos seus doentes e alertaram os médicos para terem em conta a possibilidade de ressurgimento do cancro hepático.

Dois estudos que investigaram o risco de cancro hepático e que foram apresentados na Reunião sobre o Fígado demonstraram que o mesmo não aumenta entre pessoas que curam a infeção pela hepatite C através de um tratamento com AAD.

Porém, os investigadores italianos concluíram que aqueles que desenvolveram cancro hepático durante ou pouco depois após o tratamento antiviral tinham uma probabilidade superior de desenvolver uma forma agressiva de cancro hepático, talvez devido às alterações na vigilância imunológica no fígado como resultado do tratamento.

Tratamento para a hepatite B

Imagem: Gilead Sciences

De acordo com um estudo apresentado na Reunião sobre o Fígado, em Boston, o tenofovir alafenamide (TAF), um novo pró-fármaco de dose inferior, é semelhante o anterior tenofovir disoproxil fumarate (TDF) em termos de atividade antiviral contra o vírus da hepatite B, mas causa menor perda mineral óssea. Na passada semana, a US Food and Drug Administration (FDA) aprovou um TAF autónomo para o tratamento para a hepatite B e o comité da European Medicines Agency (EMA) divulgou uma opinião favorável.

O TAF é uma nova formulação do pró-fármaco que produz elevados níveis do medicamento ativo (tenofovir diphosphate) em hepatócitos e células-T CD4 em doses inferiores ao TDF, o que significa que existem concentrações inferiores no sangue e menor exposição à medicação para os rins, ossos e outros órgãos e tecidos.

Na passada semana a US FDA aprovou o Vemlidy® (TAF 25mg), permitindo que esta seja usada para tratar a infeção pela hepatite B em pessoas com cirrose compensada. O Comité de Medicamentos de Uso Humano da EMA também publicou uma opinião positiva a respeito da candidatura da Gilead para autorização comercial.

Medicamentos genéricos para a hepatite C

De acordo com três apresentações feitas em outubro na Conferência Internacional sobre a Terapêutica para o VIH (HIV Glasgow), o uso de versões genéricas de antivirais de ação direta (AAD) resultou em elevadas taxas de cura entre pessoas que obtiveram os medicamentos através de três clubes de compradores, o que indica que os produtos genéricos são eficazes.

As versões genéricas dos AAD são fabricadas na Índia ao abrigo de licenças voluntárias da Gilead Sciences, por outras empresas indianas que não estão licenciadas e países como o Bangladesh onde não existem patentes para os produtos. A ausência de proteção de patentes permite aos fabricantes de genéricos produzir as suas próprias versões dos medicamentos. Em muitos países é legal importar medicamentos para uso pessoal através de encomendas na internet. Noutros, as importações de medicamentos genéricos são proibidas ou restringidas àquelas que são transportadas na alfândega por pessoas e em quantidades suficientes para uso pessoal.  

Têm sido apresentadas dúvidas sobre a possibilidade de as pessoas que obtêm versões genéricas dos AAD estarem a comprar medicamentos de elevada qualidade e eficazes. Um dos estudos apresentados no passado mês de outubro foi conduzido entre uma população na qual todos os medicamentos encomendados viram os seus ingredientes ativos analisados. Esse estudo concluiu que não existem casos em que as pessoas tenham recebido comprimidos ineficazes.

Os três estudos foram conduzidos entre os clientes de clubes de compradores na Austrália, Sudeste Asiático e Europa de Leste. As combinações terapêuticas usadas foram sofosbuvir/ribavirina, sofosbuvir/daclatasvir e sofosbuvir/ledipasvir. As taxas de cura com estes regimes terapêuticos variaram entre 81 a 100%, mas foram consistentemente encontradas taxas de cura inferiores (abaixo de 80%) entre pessoas com a infeção pelo genótipo 3. As coortes eram demasiado pequenas para encontrar quaisquer diferenças entre os regimes terapêuticos ou os estados de cirrose. Os estudos reportaram sobre 888 pessoas, sendo que nem todas completaram o tratamento ou as visitas de acompanhamento nas 12 semanas após o tratamento.

A World Hepatitis Alliance organizou recentemente um webinário sobre medicamentos genéricos para a hepatite C. Poderá ver o webinário no YouTube e ver os diapositivos da apresentação em formato PDF.